terça-feira, 19 de maio de 2009

Vida e arte: a TV e o paradoxo sutil na responsabilidade com a educação.

Joel Carlos S. Santos / 19.06.09.


A arte imita a vida ou vice-versa?

Algumas pessoas afirmam categoricamente que é a vida que imita a arte. Outras, em contrapartida, dizem o oposto, que é a arte que imita a vida. Com um ponto de vista mais pênsil para o lado lógico da análise, a contrapartida é muito mais significativa, pois é irrefutável que quem cria a programação é o mesmo que vive a vida, que constrói relações de vivência que servem de inspiração para a ficção, e – ainda que a ficção seja mera fantasia e traga alertas sobre a dita ‘semelhança ser mera coincidência’ – o produto da criação ficcional não é mais que a passagem para a arte de tudo que é das relações humanas. Uma cena de violência, de preconceito, ou de qualquer outro tipo, é só o reflexo criativo da observação das ocorrências sociais próprias ou alheias (da/na vida do escritor).

Outra pergunta relevante é: a TV educa ou deseduca?



(caricatura de Dodô)
http://fotolog.terra.com.br/dodocaricatura:23

Sabe-se que o foco-mor da programação televisiva não é a Educação, mas deveria correr para esse lado e colaborar com a escola nessa árdua tarefa. O que se tem feito é exatamente o contrário. A TV é responsável por propagar a informação, formar opinião, elucidar os acontecimentos, expor os fatos, entre outras boas-ações. O contraditório disso tudo é que a visão comercial do investimento da criação de um canal de televisão, pomposo como é, suplanta a nobreza do ‘formar-opinião’ e trilha outros caminhos que não o que leva à efetiva educação. É o entretenimento pelo puro entretenimento, muito mais imediatistamente lucrativo, e se reserva espaço apenas a efêmeros instantes informativo-educativos que, paradoxalmente, são veiculados em horários em que muitos estão em stand-by, a madrugada.


Se a arte imita a vida, a essa parte da vida real a arte não tem dado o devido valor. Se quem cria a televisão é o homem e este privilegia a diversão em vez da formação, é porque não lhe é importante. Se a arte é a imitação da vida, a cópia está muito focada nas mazelas da original. Não se costumam reproduzir as virtudes. E, quando isso é feito, há sempre um tom de ironia, depreciação: o honesto é o estulto; o estudioso é o nerd, o patinho feio; o homem respeitador é um quadradão e, se ele respeita a castidade e é adepto da moral e dos bons-costumes, aí sim: é um atrasado.


O papel comunicador da arte na mídia é indefinido. Nenhuma das artes tem como lema os valores, a educação, essencialmente. Seja verbal ou não-verbal, toda arte usa a comunicação como mola propulsora do seu objetivo; algumas delas usam a fala como veículo da informação. Mas, como está a fala na TV e rádio? A maneira como está só confirma a idéia de que “a arte imita a vida”. Nossos radialistas são medíocres. E poucos se destacam, não pelo conjunto da obra, mas por um ou outro fator. A locução da maioria beira as raias do ridículo, quando não ‘deprimente’. E da música nela tocadas nem se fala: a cada dia está pior; e a televisão...


(porcarias na TV, de Roberto Kroll)
http://krollcartuns.blogspot.com/2009/05/porcarias-na-tv.html


As nossas novelas não são mais do que histórias do dia-a-dia em película, em mídia digital. Ações, paisagens, caos, riquezas, mazelas e vivências estão lá assim como estão cá. Preocupantemente iguais. Tanto é que muita gente confunde de onde vem o quê, o que é realidade, o que é dramaturgia. Mais preocupantemente, com a linguagem ocorre o mesmo. E as pessoas, desatinadas de tudo isso e com um senso de correção de fala quase ausente, reproduzem aquilo a que assistem, e se a escola lhes deu pouco discernimento e educou à base do básico, agora como telespectadores desaprendem porque veem a verdade da TV diluir o pouco que aprenderam e justificam: “eu vi/ouvi na TV”.

O que fazer? Talvez com uma pitada de radicalismo em massa, fosse melhor acatar o conselho da banda Red Hot Chilli Peppers, expresso na música de título ‘Throw away your television’, ou seja, jogue fora sua televisão. Mas não, o ideal é melhorar a escola de base, a programação de nossa TV e incluir no objetivo da Arte o intento de educar ou – no mínimo – de não deseducar.

Tire suas dúvidas de gramática

Caro visitante,
após acessar o blog 'Português Com Todas As Letras' e ler as produções, você pode deixar seus comentários, sugerir temas e pedir esclarecimento sobre regras da gramática da Língua Portuguesa. Basta indicar o assunto e aguardar a postagem-resposta. E pode também colaborar com análises e correções de erros que notar.

Grato pela visita,
Joel Carlos S. Santos - 19.05.09.

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Os profissionais dos anúncios, as placas populares, a ortografia e a sintaxe do português.

Joel Carlos S. Santos / 18.05.09.

O tempo passa, o tempo voa e muita coisa se mantém estagnada. Já outras coisas regridem a cada dia, como é o caso da língua(gem), especialmente observada e analisada aqui com foco na publicidade das placas, faixas, letreiros e outdoors, nos níveis popular e profissional. A Didática, a Metodologia, as Psicologias da Educação e do ensino do português, entre outras disciplinas baseadas em técnicas que visam a otimizar o contato do aluno com o conhecimento, coadunam com o mesmo objetivo: ensinar mais eficazmente a língua materna, em especial. Porém, ao pôr os olhos nos textos desses tipos de propaganda, o que parece é que todo esforço foi e está sendo em vão, pelo menos no tocante à escrita e (consequente e pressupostamente) à fala, dado a não se poder conceber que o ‘mal-escritor’ seja capaz de falar bem e vice-versa.

Ao longo do tempo, teorias neolinguísticas surgiram para desfazer conceitos da Gramática Normativa Tradicional, tidos como arcaicos. É certo que a evolução tem que ser o pressuposto da educação de base e, principalmente, da relação entre ela e o desenvolvimento da linguagem no aluno. Entretanto, após muita teoria idealista que ainda hoje faz barulho, proveram-se ínfimos resultados positivos. Além da troca de farpas entre gramáticos e linguistas e do intento de ensinar a seu modo, que cada uma das ciências defende, o que fica é o registro escrito da língua com pouco e – em casos especialmente críticos – sem nenhum critério, sendo divulgado de forma indiscriminada.

Nas ruas, o reflexo de uma educação de base deficiente, inócua e que passa despercebida pela iniciativa pública é notadamente preocupante. Nessa referência se ressalta a prática escolar primária embora não se despreze a influência da secundária (e assim por diante) como construtora do que se tem por “poder” de comunicação. Está que provém da linguagem, que é imanente e inerente ao homem, porém não-autoconstrutiva.

Muitos teóricos afirmam que a excelência em linguagem prescinde das normas gramaticais e ampliam dizendo que “o importante é comunicar” ainda que a comunicação advenha de uma fala livre, desregrada, sem um controle previdente quanto ao resultado da relação raciocínio/modo de externação. É ate nobre pensar que o falante tem que ser livre uma vez que a língua assim o é. Em que pesa a aparência nobre, é aí onde reside o problema. Essa tal liberdade pode gerar o caos linguístico e ele fazer com que o raciocínio do comunicador se paute no pseudo-senso de posse da sua própria linguagem, o que pode resultar em produções gráficas como:


De todos os males, o menor. Como atenuante ao problema da maioria dos escritores, a expressão “(seja(m)) bem-vindo(s)” é – na maioria das vezes – mal-escrita até por quem deveria escrever bem. Por isso, é compreensível que os meros mortais a escrevam como feito na imagem anterior. Vale registrar que poucas são as cidades que contratam empresas letreiristas que ponham, na entrada de sua área urbana, tal saudação flexionada e hifenada apropriadamente; além da correta regência que segue. No caso da foto acima, podemos enumerar problemas, que refletem brandamente a base cognitiva e o nível linguístico do construtor da peça gráfica. São três os erros: o primeiro e mais brando – a ausência da consoante nasal no particípio do verbo ‘vir’. O que se pode especular sobre isso é que pode ter havido displicência no processo de escritura da palavra ou, mais agravantemente, houve o uso do processo de analogia, frequentemente usado de maneira inconsciente por crianças na aquisição da linguagem. O segundo e mais metódico – diz respeito ao uso do hífen e requer um conhecimento teórico-prático-funcional que, pode-se prever, o letreirista não tinha ao escrever o texto (ou transcrever, visto que, às vezes, tal profissional não o produz). Aí se constitui o problema da educação de base e onde se anula a teoria da comunicação pela comunicação. Se aquilo que se comunica precisa ser registrado, ou seja, grafado para a posteridade, na escrita também se fará aplicar a lógica linguista? A maioria esmagadora das línguas não é ágrafe, e isso dá ao registro gráfico um tom de relevância maior do que o que se tem dado. O terceiro, último e não tão brando, devido à instância a que chegou a inadequação, é o erro de ortografia contido no verbo da frase. Dizer ou escrever ‘seijam’ é o oposto de ‘quejo’; ou seja, o fenômeno ocorrido no verbo do anúncio vem na contramão do que a linguagem tem “permitido”. No dia-a-dia, muitas vezes, a liberdade permite a fala fluir para aquilo que vocalmente é mais fácil. Um ditongo apresenta um trabalho mais apurado do trato vocal, dos articuladores; e a noção de semivocalidade compete com a vogal na produção sonora do encontro e define na língua moderna o desaparecimento do som débil, isto é, fraco, sem independência sonora (por natureza da construção). Daí a se compreender que a linguagem dinâmica associada a fatores como a agilidade da fala e da comunicação e a despreocupação com método, estratégia ou controle, que resulta da liberdade, que lhe é intrínseca, gera mudanças e com elas, problemas de toda ordem. Assim, no exemplo em que há o surgimento do “i” onde não havia, o aparecimento contrasta com um fenômeno vocálico comum, a supressão: o vocábulo ‘louco’ vira ‘loco /ô/’, e ‘peixe’ é na linguagem dinâmica quotidiana convertido a ‘pexe /ê/’. O erro do letreirista não se justifica como sendo uma possível displicência, mas uma representação gráfica daquilo que ele ouve/ouviu no seu cotidiano; tendo como agravante, a ausência de conhecimento semântico-estrutural básico da palavra que usa.

Os anúncios populares em língua portuguesa são muito ruins; os profissionais também. Raros os que não trazem problemas. De sintaxe, de ortografia, de articulação, de criatividade, entre outros, eles sempre aparecem. Um simples “vendem-se casas”, uma composição de palavras, uma crase ou um pronome configuram-se num entrevero entre escritor e placas publicitárias. A fealdade da grafia, a falta de criatividade e zelo dos profissionais responsáveis por produzi-las, o descomprometimento total dos populares e a presença excessiva dessas peças pelas ruas da cidade implicam um problema grave: a poluição visual. Apesar disso, o que preocupa mais é o processo de deseducação linguística que tais placas imprimem na cabeça do “leitor” e se põem na contramão, até mesmo, dos conceitos linguistas já que algumas dificultam a comunicação. A ortografia e a sintaxe não são a solução para o problema do trânsito da informação através da fala e da escrita. Mas, uma coisa é certa: sem ela, a fluência da comunicação fica comprometida e – quer queira quer não – é muito mais bonito falar e escrever bem. É isso!

quarta-feira, 13 de maio de 2009

O “linguistismo” e as novas ideias para o ensino de língua materna nas escolas.

(Joel Carlos Santana Santos/06.04.09 – escrito de acordo
com as novas regras ortográficas.)

A nova era da Educação vem cheia de boas intenções e alicerçada em teorias que visam à liberdade discente na produção do conhecimento. Quando o assunto-alvo é a linguagem, surgem ainda mais teorias, complexas e cheias de falas ‘do politicamente correto’. Muitas teorias baseadas no conceito de comunicação exclusivamente pela comunicação, em favor da passagem da informação como ela se configura, mas em detrimento da Norma, do veículo através do qual essa informação chega.
O certo é que como estava não poderia ficar. Como versa Nicolau Maquiavel em um de seus pensamentos, extraído do romance O príncipe: “se os tempos mudam e os comportamentos não se alteram; então é a ruína!”. Entretanto, há que se medir o tamanho dessa mudança, pesar seus prós e contras, definir sua razão de ser e sua viabilidade. Com o desenvolvimento das ciências e o advento da tecnologia, tornou-se mais eminente a preparação para “o conhecimento de mundo”, o que inclui o poder de comunicação escrita e, principalmente, falada; contudo, a teoria do contrário vem agarrando suas raízes no solo da consciência discente. Contribuindo para isso, estão os novos professores linguistas, que vêm apregoando nos 4 cantos do planeta a abolição das normas gramaticais na fala, que deve ser livre. Com o discurso embasado no dito popular “faça o que eu mando, mas não faça o que eu faço”, já que nenhum deles fala com tal liberdade ou a aceita sem dogmas na fala alheia, eles vêm apresentando teorias que (re)produzem ideologias como a de que “qualquer falante é capaz de compreender um texto, dizer se está coerente, resumi-lo, dar-lhe um título e etc. (Chomsky)”, que “o falante é senhor de sua linguagem (Celso Luft)” visto que a linguagem lhe é imanente, ou que “a gramática traumatiza o aluno e paralisa seu aprendizado” e tudo isso vem sendo ditado a graduandos das áreas afins da educação, que aceitam religiosa e incontestavelmente.
Maquiavel, quando disse nas entrelinhas do seu texto que a evolução era necessária para evitar a estagnação e consequentemente o caos, não fez alusão ao detrimento do velho em nome do novo. É sabido que mesmo um erro serve de apoio ao aprendizado, à adequação. Fato que não ocorre com a visão substitutiva desse modismo linguístico em cuja bibliografia predomina a desconsideração da dicotomia mais eminente em qualquer aprendizado: ‘acerto-erro’. O que se deveria fazer era transformar o conhecimento sem deteriorar o vetor de condução do conhecimento; no caso das novas teorias da linguagem, a ausência dos conceitos de ‘certo e errado’, se abolidos como querem os adeptos do linguistismo, levaria a língua a um nível de imprecisão sem tamanho. Imagine-se: um país como o nosso, detentor de 80% dos falantes do português, se impregnado de liberdade para gerir a língua e ‘produzir’ sentido sem a tutela da Gramática, com tantas maneiras de se falar e – mais preocupantemente – de registrar o que se fala, com a pobre cultura estudantil e os altos índices de evasão escolar e analfabetismo, além também do hábito da leitura chegando às raias do ridículo, onde pararia a língua? Como ficaria o vernáculo português no mundo?
Há muito tempo, a responsabilidade dos baixos números da educação brasileira está na falta de investimento. O que sempre se alega é que o pequeno percentual do dinheiro público separado para a educação, cujo montante ainda sofre desvios fraudulentos vergonhosos, só contribui para a deterioração das inter-relações entre governo, escolas e professores. Implicações como “O governo finge que me paga (com um salário de miséria) que eu finjo que ensino e vocês fingem que aprendem” tem como resultado anos de uma escola caótica, abandonada pelo poder público; entretanto, a língua sempre foi ensinada na medida do possível e com a estrutura viável para o momento, para o investimento. O tempo passou. Agora o comportamento dos professores terá que mudar, porém o dos governantes se mantém intactamente inalterado, os alunos estão piores do que antes em vários fatores (cultural, educacional, sócio-moral, ético e legal, indo da crise das relações até à agressão) e, desta vez, a ruína se instaurará em outro ambiente: o da linguagem. As diretrizes do momento são ‘divertir para atrair’ ou ‘mudar para encantar’. A educação tem que ser atraente, ainda que isso desfaça o foco da relação ensino-aprendizagem, prescinda-se de coisas importantes, como as peças do processo, e não se saiba da eficácia da técnica (muitas vezes experimental).
Mudar virou uma obrigação, uma determinação. E se o professor não se propuser a isso, será considerado obsoleto, haja vista a frequência com que se convertem ao linguistismo alguns e se doutrinam outros ainda no processo de graduação. O pressuposto de mudar nem sempre é rejeitar o velho, principalmente quando este é parte essencial do foco do câmbio; Já o pressuposto de se ensinar gramática é saber gramática. O de uma boa leitura ou o de uma boa produção é o reconhecimento básico da estrutura do texto (falado ou escrito). E é inconcebível que se possa fazê-lo sem tais bases. E, para o professor-linguista, é muito mais cômodo se liberar da obrigação de corrigir certos e errados de gramática e estrutural-textuais, e focam sua aula na interpretação, que depende da leitura do aluno e do professor, que não leem. De olho em justificar tudo o dito, não é, entretanto, papel da Gramática nem dos que a estudam e tornam públicos seus postulados, cantar as virtudes do seu teor normativo como solução única para os problemas da língua. O que se intenciona com ela é dar apoio à comunicação (passagem) e à produção (criação) do sentido da linguagem. A linguística faria sua parte catalogando as variações e desfazendo o processo de depreciação preconceituosa e rechaço em relação à língua coloquial.
Toda a teoria linguística teria plena validade e incontestável ideologia, vista a nobreza da ideia subliminar à radicalidade da mudança, se primasse pela aglutinação de seu objetivo com o da gramática, ou seja, se ambas cooperassem sem o discurso liberalista inconsequente que tem, sem a negativa à norma. O certo é que a Gramática Tradicional não deprecia ou despreza totalmente a ideia linguística, tampouco a intenção do método mais atraente para o ensino de língua. Entretanto, na contramão do lógico, a tese da comunicação por si, dissociada da estrutura, não condiz com a realidade estudantil. No que tange a concursos, a vestibulares, ao Enem (prova gerida pelo governo com vistas a testar a capacidade do alunado, principalmente, de baixa renda e para dar acesso às universidades) e às próprias avaliações colegiais, o cabedal dos estudantes gera índices vergonhosos; e tal tese nem viabiliza um ‘aprendizado para a vida’, uma vez que já se construiu uma cultura de ‘rotulação’, parafraseada aqui numa máxima da literatura: “tu és responsável por aquilo que falas”.
E os linguistas tomarão para si a responsabilidade?

Fonte e autoria

Gente, caso usem os trabalhos do blog em quaisquer que sejam as situações, reportem a autoria e ano de produção, além da fonte, ou seja, o site de onde se tirou o material.
Agradecido e satisfeito, aguardo contato.

terça-feira, 12 de maio de 2009

A professora e a prostituta

(Joel Carlos Santana Santos/01.04.09)

Escola Primária Estadual Adelide Pittalacchio Madruga, março de 1990, Feira de Santana, Bahia. É o começo de mais um ano letivo. Janete era a mais jovem e bela professorinha. Trabalhava na escola fazia 5 anos, desde que completou os 18. Era profissionalmente tão precoce quanto elegante e cobiçada. Suas quase duas décadas não previam seu futuro. Era determinada e havia passado no vestibular cedo e logo ingressou no serviço público. Seus pais a gloriavam, espalhavam suas virtudes aos quatro cantos do mundo. Era a menina prodígio.
Adorava lecionar. Via em cada uma das crianças, com quem passava todas as manhãs letivas, um promissor cidadão e sonhava vê-los depois de formados, só para poder saber que o que fez ali valeu a pena. Ia, vinha. Passavam os anos e ela ali: a Pittalacchio era seu refúgio.
Sua vida profissional fluía tranqüilamente. A vida amorosa também. Janete se preparava para subir ao altar. Júnior era seu príncipe encantado; fidalgo baiano, era um bon vivent. Terminara a faculdade de Relações Internacionais. Visava à vida de diplomata, essa era sua única perspectiva de futuro. Acostumara-se a viajar pelo mundo.
Nete, como era carinhosamente tratada por seus pais, prosseguia em sua jornada, cumprindo seu papel, que defendia com unhas e dentes. Ia e vinha. Perdia noites na lida docente. Ao sair da escola, seguia direto a casa e preparava toda a atividade do dia seguinte, além de revisar tudo o que fez: acerto a acerto, erro a erro. Dedicação era seu sobrenome, e a escola sua irmandade. 1997, são passados sete anos. Longos, árduos e de uma dedicação quase religiosa. Janete agora tem duas notícias, uma boa e outra ruim. Uma provinda do governo do estado e outra, de Júnior.
Após greves, crises financeiras e um grande período de escassez, a professora recebe um convite para mudar de turno, mudar para as séries maiores e ganhar um pouco mais. Essa era a boa notícia. Júnior recebera dos pais uma viagem à Espanha, presente de aniversário. Iria ficar lá por um ano. Foi, e o ano se passou. Decidiu ficar. Toca o telefone, é ele. A cultura céltica jamais o atraiu, embora essa tenha sido a desculpa que dera. Não iria mais voltar. Disse pretender ficar mais alguns anos.
– Sinto muito! – foi apenas o que disse. Desligou. Estava a seu lado a bela Cruz, mulher andaluz que conhecera nas andanças e cuja mão segurava apaixonadamente. Janete, do outro lado da linha e ainda esperançosa de aquilo tudo fosse um trote, mantinha o aparelho ao ouvido e em transe. Por alguns segundos, ouvia o sinal sonoro insistentemente repetido pelo fone [tu, tu, tu, tu, tu, tu, tu...]. Pô-lo no gancho, e – como num passe de mágica – sua vida se desligou no instante em que o apoiou sobre o console. Nada mais tinha razão de ser. Foi abandonada pelo único homem que teve, amava e a quem havia devotado parte de sua vida. Essa era a notícia ruim.
Não havia uma só lágrima nos olhos de Janete. Atônita, pôs-se a pensar nos porquês daquilo tudo. Olhava a casa que acabara de comprar e a todo o enxoval comprado nos meses de véspera ao casório. Havia de tudo, do bom e do melhor. Muitos presentes dos amigos, das cunhadas e dos irmãos paulistas, enviados via postagem. O catálogo de vestidos de noiva estava sobre a mesa de tampa de granito polido, caríssima; repousava lá ainda lacrado. Não havia escolhido um. Num rompante e com a força de um suspirar, girou o braço e o apanhou. Na capa, o mais belo de todos. Mas não! A recém-ex-noiva se encantaria por outro. O filme plástico que envolvia a revista fora retirado com avidez. Folheado, abriu-se naturalmente no centro onde ficam os nós dos grampos e da cola. E lá estava ele, o escolhido. Já era tarde: tudo estava abortado, até os sonhos. E o vestido, imponente no corpo do manequim, parecia que lhe caberia como uma luva, de pelica, com a qual tomara o tapa e sua vida havia parado. Solitária, por seu rosto juvenil desce uma lágrima, única. Prenúncio da profunda revolta que logo sentiria, quando atinasse para que aquilo era um caminho sem volta. Secou-a com a mão revolta e decepcionada a ponto de lhe deixar a tez enrubescida. Apagou a luz (era cedo para dormir) e, sem sair do lugar, agaixou-se em meio ao breu. Amanheceu o dia.
Não havia voltado mais à escola. Vários chamados e comunicados e nada! Foi exonerada por abandono de serviço. Não via razão em viver e sabia que não poderia ensinar mais nada dali para frente. Não se sentia realizada, porém acreditava que era hora de parar. Foram semanas sem sair da casa nova, desde que recebeu o telefonema. A casa havia sido impecavelmente arrumada. Pôs a réplica caseira do vestido que cozeu durante a reclusão. Apanhou uma escada das longas, que mal podia carregar. Com esforço a recostou na fachada da casa, puxou o vestido até a altura das coxas, deixando à mostra seu belo par de pernas e subiu. No topo da escada e já com uma platéia, que se formou devido à curiosidade por saber o que a fez sair de casa, apregou uma placa.
Lá estava escrito em letras garrafais e em bom português: Vende-se sexo. Noiva que jamais foi amada e que desistiu de aprender a amar.

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