segunda-feira, 6 de julho de 2009

Alma de Robin Hood.

Joel Carlos Santana Santos 09/12/2003

Ser, não ser! (...)
Certa vez encontrei pelas ruas um garotinho. Mais parecia um daqueles meninos-de-rua que encontramos todos os dias nos faróis de trânsito e para quem, costumeiramente, fechamos o vidro como a desdenhar deles. Tal garoto tinha nos olhos lágrimas e uma espelhada tristeza imensurável. E perguntei:
– O que aconteceu, garoto?
Ele se recusou a me responder, pois cria não haver por que fazê-lo. Insisti. Ele, depois de muito hesitar, disse:
– Tentei ajudar aquela senhora a atravessar a rua e ela se recusou a aceitar minha ajuda porque teve medo de mim. O que foi que fiz a ela? – perguntou.
Custou-me, naquele momento, resistir ao nó que me veio à garganta e às iminentes lágrimas de compadecimento. Dirigi-me à senhora que se assentava num banco de uma praça próximo à parada de ônibus. Assentei-me a seu lado e, sorrateiramente, puxei conversa:
– Bom dia! – Desejei-lhe sorrindo cinicamente.
– Muito bom dia, senhor. – retrucou ela sem, ao menos, olhar para quem com ela falava.
Percebi que a velha senhora era daquelas rabugentas que tomam tudo como “o fim-da-picada”. Retomei a conversa, mesmo sabendo que dali não sairia mais que alguns resmungos afônicos e dissaborosos:
– Agora há pouco vi um pequeno garoto a chorar. Cortou-me o coração.
Ela se manteve inerte e descompadecida das lágrimas que relatei ter visto no menino que ela ultrajou. Insisti agora com ironia dirigida a sua atitude:
– Coitado! chorava porque fora ultrajado por alguém insensato. Tentou ajudar e foi mal-compreendido, ou melhor, foi discriminado.
A velha senhora olhou-me como a chamar-me inoportuno por estar-lhe perturbando com aqueles choramingos. Eu, objetivando arrancar dela confissões de suas atitudes inconseqüentes, indaguei:
– Quem seria tão mau a ponto de maltratar um garoto indefeso?
A "má-dame" já não via a hora de seu ônibus chegar para escapar do bombardeio a que a submetia. Não sabia que eu sabia do impropério que cometera, e isso a fazia crer que era o acaso que me colocava ali, ao seu lado, jogando-lhe sua insensatez na cara. Àquelas alturas, já até havia se arrependido, mas não se rendia. E eu reiterava o assunto minuto a minuto, e ela escapava a todo instante.
Surpreendentemente, a dona disse em tom bem afônico (como lhe parecia ser de costume):
– Não tinha intenção de ofender aquele garoto. Simplesmente não queria que ele me ajudasse. Não necessitava.
Depois de alguns segundos de transe devido à dúvida que no momento pairava sobre minha cabeça, soltei:
– Não é bom ajudar e ser ajudado às vezes?
– Sim. Cortou-me o coração saber que ele tinha chorado porque me recusei a ser por ele ajudada. Às vezes me pego cometendo esses deslizes.
– Então, por que não pedir desculpas ao pequenino e ficar de alma limpa?
Ela olhou-me como a pensar: "quem é este homem para querer dar-me ordem e lição de moral?". Eu, já quase convencido de que ela não tinha mesmo coração, maquiavelicamente, pus-me a pensar em como lhe daria uma lição. Foi bem complicado, mas consegui.
Ela me olhava sem entender o porquê de estar ali questionando e tentando dar-lhe a tal lição de moral que imaginara. Eu, sabendo de sua desvirtude: a soberba, projetei a lição a que ela temia, mesmo sem saber, e disse:
– Sabe! Às vezes, a gente precisa confiar nos outros e ter humildade para aceitar ajuda. Às vezes
– também – a gente precisa pedir desculpas.
A velha senhora olhou-me pela última e cortante vez.
Subitamente, surgiu alguém a quem, provavelmente, conhecia. Esquivando-se de mim, levantou-se e atendeu ao conhecido.
Era o momento de agir. Fui de encontro a todos os meus princípios, porém por uma boa causa: dar uma lição na estulta e irredutível senhora. A primeira coisa que me veio foi apoderar-me da sacola, de cujo conteúdo não tinha noção, e sair sorrateiramente. A confiança que ela em mim depositou e o preconceito que lhe cegava para o perigo recôndito foram seus maiores inimigos. Ela se viu enganada por alguém inesperado, em quem não via (visto que não existia concretamente) nenhum mal.
Não sei o que se passou dali por diante com a velha senhora, mas sei que a lição foi aplicada. Ela dali para frente pensaria duas vezes, creio eu, antes de subjugar alguém.
Durante minha escapada, nem tive tempo de averiguar o que furtara e, logo, encontrei o pequenino a quem a velha maltratara. Ele olhou-me e inocentemente disse:
– Bom dia, senhor! – já nem se lembrava do acontecimento de que foi vítima e eu, testemunha – Tio, o senhor tem uma ajuda para mim? Pode ser qualquer coisa! – Declarou.
Olhei a sua face triste devido à fome que o atormentava e a sacola que tinha nas mãos (a essas horas a velha já estava longe e não corria risco de retornar e vê-la com o garoto) e, sem me preocupar com o que lhe dava, passei-lha. Ele agradeceu e se foi.
– Adeus, garotinho! – disse-lhe cheio de alegria. Um estranho sentimento de justiça enchia-me como o dilúvio a terra, e já não compreendia (naquele instante) o limite entre o certo e o errado.
Talvez cresse que o que fiz não fosse errado, mas meu moral, ao longe, gritava minha iniqüidade à minha consciência. Lutava e justificava meu erro com o tal regozijo que sentia e me enganava solenemente. Continuei. Contente com o ato assistencial que praticara, continuei.
Apesar do conflito, cria ter feito a maior das boas ações. E fiz. O garoto me reencontrou dia após e, agradecido pelas iguarias natalinas que lhe presenteei, disse ter se alimentado por dias. Declarei que não era por nada e me fui. O sorriso que ele disparou e o brilho dos olhos me aliviaram da culpa de ter roubado a anciã.
(...)
Cheguei à casa de um velho amigo. Era uma daquelas visitas de “há-quanto-tempo”. Já não o via fazia séculos e subitamente resolvi ir até lá. Era uma bela casa. Jardim garboso, flores raras, grama impecavelmente cortada, piso limpo e um destaque: um supercarro na garagem, dos que nem todo rico pode ter. Titubeei em tocar a campainha, pois não me sentia bem em chegar lá após tanto tempo ausente. Toquei. E surge ele, Paulo, meu velho amigo. Cumprimentamo-nos e me convidou a entrar.
Na sala-de-estar, assentada num luxuoso sofá, estava a velha senhora do episódio de que fui testemunha e personagem (talvez herói, talvez vilão – não sei ao certo!).
– Bom dia! – cumprimentou-me a senhora.
Olhava-me com estranheza e parecia desconfiada de algo. Mas de nada se lembrava. Possivelmente achasse conhecer a voz que lhe respondera o cumprimento já que, no episódio do garoto, mal me olhou o rosto e devido a isso e à caduquez da idade via-se confusa.
Nas mãos a senhora tinha um livro, que lia como passatempo. Um esquisito transe me tomou e Paulo, estranhando a maneira que a olhava, quebrou-o:
– É minha mãe! Dona Justa – disse.
Sem me preocupar com o paradoxo do nome da velha rabugenta, fiquei intrigado como o título do livro que lia: Robin Hood: o príncipe dos ladrões – cujo lema aprenderia mais tarde (...).

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